Penso nessa frase e consigo ver a miséria. Consigo tocar nas pessoas encurraladas, espremidas em um canto do mundo sem água, sem comida, sem roupa, sem remédios, sem livros...
A miséria é um lugar espremido. Quem vive na miséria vive o tempo todo atrás do mínimo para sobreviver ao dia. E no outro, novamente, corre atrás do mínimo da vez.
Quem vive na miséria vive n’outro tempo. Não é como o nosso. Os intervalos que fazemos, os descansos, não existem na vida do miserável. É no intervalo que o miserável morre. É entre duas não refeições que se vai de fome. O miserável, a todo tempo, está ocupado com as coisas que faltam. E falta tudo. Não há sobra na miséria. E por isso não há intervalo.
A miséria é um lugar espremido. E o Brasil mal sabe disso.
Quando o ministro diz que é preciso taxar livros porque só o rico lê, ele diz o que sabe sobre o Brasil: nada. E diz também o que nós já sabemos: o ministro não lê. Porque se lesse, não trataria a miséria assim. “Não seja miserável!”, é o que diz o governo quando acusa o miserável de ser miserável. Como se a miséria fosse uma escolha do povo e não de quem o governa.
A miséria existe e é um lugar espremido.
Nunca passei fome nem de longe vivi a miséria. Quando criança já me senti triste por não ter o que os ricos tinham: casas imensas, cheias de conforto e televisores em todos os cômodos e vários cômodos, videogames, varandas, jardins... Estudei em escola de rico sem ser rico. E como me deixava feliz-triste visitar os amigos em suas casas enormes. Quando voltava para casa, sentia um pouco de raiva por não ser tão rico. Sentia inveja. Sentia pena da minha condição de não-herdeiro de fortunas. Coisa de criança, coisa do sistema também, que é cruel assim, nos fazendo querer coisas que não têm importância. Nos transformando em produtores de novas misérias. Pois é querendo tanto, que lutamos pelo que não precisamos.
Hoje olho para minha infância e vejo o quanto ela foi rica. O quanto foi valioso viver nas casas em que vivemos. E vivemos em muitas casas, posso dizer. Por um bom tempo moramos com nossos avôs enquanto ajeitávamos algumas contas, que nem eram tantas. Tínhamos esse conforto, de escolher onde morar. E hoje sinto falta da nossa convivência, do meu avô suprindo todas as nossas manhas de meninos-netos. Sinto falta das nossas casinhas refinadamente simples, onde nas tardes de sábado, se fazia bolos e biscoitos para a semana toda. E aos domingos de manhã a gente acabava com tudo.
Estive longe, muito longe, da miséria, mas muito mais perto do que o ministro está.
Em todas as casas que vivi, aprendi a olhar a vida com meus olhos e os olhos dos outros. Aprendi que a miséria é um subproduto da riqueza. Não há ricos sem miseráveis, não há casas enormes de portas de mais de 10 metros e bibliotecas particulares com milhares de livros, sem que alguém durma na rua sem comida, sem água, sem remédios e sem livros.
A miséria é um lugar espremido. É um lugar em que o Estado não está. É um lugar das ausências.
A não ser quando o Estado sobe o morro. Mas quase sempre é para espremer ainda mais o miserável.
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