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Lucão

A senhora do trem

Aconteceu na minha viagem de volta, de Santiago para o Porto. Eu não procurava pela versão feminina da história do velho do bonde de Lisboa. Mas aí a senhora entrou no trem e se sentou ao meu lado.


Eu tinha acabado de terminar a peregrinação do Caminho de Santiago, e decidi voltar ao Porto para desfrutar o restante das férias. Então acordei cedo no albergue e me fui à estação, com sono. O plano era descansar nas quatro horas de viagem. Aí chegou a senhora, uma espanhola com oitenta anos, andando com esforço, falando alto com os que cruzavam o seu caminho, e se sentou ao meu lado. À nossa frente, nas cadeiras de frente para nós, estavam dois espanhóis um pouco mais velhos que eu. Eram amigos e viajavam a Portugal. Foi a única coisa que me disseram antes da senhora começar a falar.


No começo eu achei uma graça. A senhora sabia sobre o que falava, e falava de tudo, como, por exemplo, sobre as cidades que passávamos. Sabia das histórias originárias, do tamanho da população, das comidas e, por vezes, contava alguma curiosidade. Falava como uma guia turística, e dava dicas do que fazer em cada vila, por menor que ela fosse. Eu estava na escola aprendendo sobre a Galícia, foi a sensação que tive.


Depois piorou. Começou a intrometer nas conversas que os amigos tentavam estabelecer entre si.


O mais velho dos dois, aparentemente, era o que tinha organizado a viagem e sabia um pouco mais sobre onde estavam. Quando tentava explicar algo ao amigo, como “já estamos em Valença, a primeira cidade portuguesa depois da Espanha”, a senhora o interrompia dizendo algo como “Aqui não é Valença, ainda estamos em Tui”, e contava uma longa história sobre as duas cidades, sem fazer intervalos, sem dar um espaço para o respiro, sem dar uma chance para que os amigos conversassem.


Quando nos calávamos, claramente querendo um pouco de silêncio, ela inventava outro assunto. Começou a falar sobre sua saúde, o motivo da sua viagem a Portugal. Mas não só sobre a saúde, mas sobre cada remédio que tomava, cada exame que havia feito, cada médico que havia consultado e o que cada um havia dito, sem deixar escapar uma letra. Eram histórias sem fim, que só chegavam ao final quando um de nós dizia “Mas agora a senhora está boa, que bom”. Mentira. Ela nem ouvia o que dizíamos e continuava a falar sem parar. Nos ignorava. Ou melhor, explorava nossa paciência. Sabia fazer o jogo, sabia que não éramos capazes de pedir silêncio a uma velha enferma.


Quando começou a ensinar a receita do “verdadeiro bacalhau a brás”, como um animal que foge da presa, me levantei e me tranquei no banheiro. Eu não tinha nada a fazer no banheiro. Fiquei por quase uma hora por lá, pensando se apertava o botão de emergência do trem ou se pulava com ele em movimento. Depois saí mais calmo da sala de banho, caminhei por outros vagões e me sentei numa fileira vazia.


Quando chegamos ao Porto, voltei à minha cabine para buscar as malas. A senhora falava, enquanto imitava uma faca com as mãos: “Você precisa cortar a batatinha bem fininha, do tamanho de um palito, ou ela não cozinha direito….”. Os dois amigos estavam exaustos, me olhavam como se pedissem ajuda. Eu os ignorei. Peguei minhas malas e fugi.


Pois eu sei que na selva é assim: a melhor hora de se salvar é enquanto o predador se alimenta.

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