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Lucão

Barulho de calçado riscando o chão de terra



Outro dia estava assistindo a um filme que se passava em uma pequena cidade da França, e uma cena de uma personagem caminhando por uma trilha me fez viajar.


Não foi só a imagem, mas também o barulho de calçando riscando o chão de terra, me fizeram viajar enquanto a personagem caminhava. Era o mesmo barulho que eu ouvia durante os trinta e um dias de peregrinação pelo Caminho de Compostela. Na minha aventura, cruzei a Espanha da cidade francesa de Saint Jean à cidade de Santiago, do outro lado espanhol.


A memória é uma coisa fantástica. Estou há quase dois anos em casa sem poder viajar, mas, ainda assim, com as lembranças, viajei muitas vezes. Naquele momento do filme, fiquei numa saudade de viver as emoções do Caminho.


Me lembrei de como acordei no meu primeiro dia, ansioso e com medo de enfrentar as subidas da França. Era o trecho mais difícil do Caminho. Eu tinha receio de não conseguir alcançar a cadeia dos Pirineus, com mais de mil metros de altura. Daí, antes das seis da manhã, comecei a caminhar, ainda com pouca luz no céu e bastante neblina sobre o chão. Fui saindo da cidade devagar e a paisagem foi trocando aos poucos, de casas de tijolos à vista para cenas de campo com muito verde.


O começo foi por uma estrada de asfalto, estreita, que subia fazendo ziguezague. Eu caminhava pelos “fundos” da cidade, poucos carros trafegavam por ali. O único som que se ouvia naquele lugar era do vento batendo nas folhas que margeavam a estrada, e também dos meus calçados riscando o chão.


Caminhei pelos primeiros quilômetros do jeito que havia planejado: sozinho. Num trecho, uma seta amarela pintada numa placa de estrada me fez abandonar o asfalto e me conduziu a uma trilha de terra. Dali, dava para ver a estrada lá embaixo. Já havia subido um bocado dos Pirineus, e isso me deu mais ânimo. Comecei a andar mais rápido.


Era difícil enxergar o Caminho. A neblina estava densa e mal dava para ver o que estava à minha frente. Foi quando comecei a encontrar peregrinos. Percebi que eu não tinha sido o primeiro a acordar naquele dia. Nos cumprimentávamos quando passávamos uns pelos outros, e foi desse jeito que conheci Marc, meu primeiro amigo, um espanhol bem mais novo que eu, mas com o mesmo entusiasmo. Conversamos um pouco, Marc me contou que a sua namorada o esperava em Santiago e que pretendia pedir sua mão em casamento caso conseguisse cumprir o Caminho. “E se não conseguisse?”, pensei. Ficamos em silêncio na maior parte do trajeto, ambos escutanfo os sons do Caminho.


Quando atravessamos uma neblina mais densa, chegamos ao topo dos Pirineus, numa cena muito bonita: uma nuvem se descortinou de repente e revelou o céu limpo daquele dia. Foi quando tive certeza de que, dessa vez, eu conquistaria Santiago.


Meu plano de caminhar sozinho foi desfeito na primeira amizade que fiz. Meu medo de não conseguir chegar se foi no primeiro trecho que conquistei. E quando cheguei a Roncesvalles, o destino do dia, éramos oito peregrinos conversando e fazendo planos. Gente de todo canto do mundo, comemorando a vitória dos Pirineus. Nos hospedamos num monastério, conhecemos a cidade, jantamos juntos numa mesa enorme e depois fomos dormir. Antes de me deitar, coloquei o alarme para despertar ainda mais cedo do que no primeiro dia. Fui dormir cansado, mas com ânimo.


Quando acordei, peguei minha mochila em silêncio e desci para não incomodar os outros peregrinos que ainda dormiam. Ainda estava escuro lá fora, por isso, antes de sair, separei minha lanterna. E quando fui para a porta começar minha jornada, Marc apareceu e me pediu para esperá-lo. Ainda pensei se eu não devia seguir sozinho, como havia planejado, mas Marc era uma boa companhia, que gostava do silêncio, como eu.


Depois, o vídeo terminou sem que eu soubesse do que se tratava. Eu viajei por essa lembrança durante as duas horas do filme. Só para que eu me lembrasse de como a memória é uma coisa fantástica, que se acende ao menor barulho de calçado riscando o chão de terra.

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