Sábado, dez horas da noite do último dia da romaria para Trindade. Acabo de chegar na largada do caminho da fé. O lugar está tomado de gente. Ajudo a preencher os últimos espaços acompanhado da minha esposa, meu cunhado com a namorada, minha mãe, meu irmão com a namorada e seus pais.
Aproveitamos para ir ao banheiro antes de sair rumo à Trindade. A fila para os sanitários é imensa. Aguardamos uns quinze minutos… todos prontos, preparados, começamos a caminhada.
A partida é bem difícil. O primeiro trecho é uma longa subida. São os primeiros passos de uma caminhada de dezoito quilometros. O corpo frio não anda direito, se arrasta, e eu começo a perceber que o caminho não vai ser tão fácil e prazeroso como imaginava.
O trajeto está abarrotado de gente. Muito barulho, alguns gritos, músicas de todos os ritmos tocam de todos os lados: das barracas que vendem espetinhos, cervejas e todos os tipos de bebidas; dos telefones dos romeiros; das vozes que cantam alto e em coro músicas de gostos duvidosos. A partida é estressante.
Quando chego no topo do primeiro trecho, avisto uma longa reta e, em seguida, uma breve descida. Está tudo lotado. Me impressiono e me preocupo um pouco. Estou no caminho para me testar fisicamente e também em busca de um pouco de isolamento, quero caminhar e refletir. Impossível.
A gritaria continua. Ultrapassamos alguns romeiros, somos ultrapassados por outros, e a cena mais comum é a de jovens bebendo muito. São os mais eufóricos, brincam, cantam, se carregam nas costas, se empurram e esbarram no povo, não se importam… tiram sarro um do outro e gritam bastante.
De longe avistamos uma fila imensa que se forma rapidamente. Em seguida, descubro que uma empresa distribui sorvetes de graça para os romeiros. Passamos a fila e o caminho se esvazia um pouco. Continuamos, aproveitando os espaços vagos, mas logo estamos novamente espremidos pela multidão.
Passam por mim um uma senhora com seu filho, um pouco mais velho que eu, e uma outra companhia feminina. Estão mais dispostos, passos rápidos. Dois metros à frente, a mulher se desequilibra em um toco fincado no meio do caminho e cai. Corro para ajudá-la, mas antes de acançá-la escuto vaias e chacotas da turma de jovens que vêm logo atrás. E os risos são imensos, se reverberam, ganham novas vozes com outros jovens do caminho. Maiores que os gritos, só o meu susto e o constrangimento da senhora, que se levanta rapidamente, bate a poeira do corpo e segue envergonhada de si.
Chego no meio do caminho cansado das pernas e exausto mentalmente. Vi gente de fé caminhando, mas vi muito mais gente de má fé no caminho, perdida, indo na mesma direção.
O percurso foi todo assim, eu tentando relaxar e não conseguindo, vendo cenas de todos os tipos: tentativas de roubo, bem e mal sucedidas; desrespeitos; falta de educação… uma experiência muito mais antropológica que espiritual.
Chegamos à Trindade perto das três da manhã. Havia um pouco de silêncio por ali, que parecia muito mais com cansaço do que com respeito. Não seguimos à catedral. Paramos na entrada, esgotados, pegamos um taxi e voltamos.
Dentro do carro, nenhum barulho, nenhuma voz. Aproveito os dez minutos da volta para tentar refletir sobre o que vivi… mas durmo.
O caminho da fé é longo, mas o amor ainda é muito curto.
“Ser humano sem amor é não ser”.
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