A escrita da crônica é um exercício da memória. É como se eu caminhasse por um galpão imenso procurando histórias. O exercício de caminhar e de procurar já me fazem bem, mas fico mais feliz quando encontro uma história que tem o brilho necessário para virar uma crônica.
Na caminhada de hoje, encontrei uma aventura que vivi quando fiz o Caminho de Compostela pela segunda vez, em 2017. Viajei à Espanha para peregrinar 820 km em 31 dias — e para fazer outras coisas também.
Muita gente pensa no Caminho como sendo uma longa caminhada e só. Mas a jornada é imensa por todas as experiências que se pode viver: com os pés, com as mãos, os cheiros, as paisagens, os sentimentos; e com as dores, as azias, as ressacas, as gargalhadas, as amizades. Uma vida toda acontece quando se caminha tanto ao lado de pessoas.
Javi e Jinez, dois amigos espanhóis, caminhavam juntos quando os conheci. Também foi quando me juntei a Maitê, Liga, Luca, Pepe, Moisés, Carlos e Sebas, peregrinos de todo canto do mundo que conheci caminhando. Formamos um grupo grande de peregrinos que, como Moisés dizia, “desfrutavam” o caminho. Ficamos amigos. Nos poucos dias que caminhamos juntos, conversamos bastante e aproveitamos as cidades. Ficávamos quase sempre nos mesmos albergues e, no fim de cada caminhada diária, nos encontrávamos para celebrar.
Foi lá pelo décimo segundo dia de peregrinação, em Logroño, que Javi e Jinez tiveram a ideia de caminhar à noite. O desafio era um pouco difícil, mas todo mundo gostou e quis cumpri-lo. Começamos a nos planejar à tarde. Quando a noite chegou, tomamos um banho, arrumamos as mochilas e saímos do albergue, que ainda mal tinha nos recebido. Parecia loucura caminhar sem luz e sem descanso. Mas também parecia excitante.
É claro que a caminhada era um pretexto. O que queríamos mesmo era lavar a alma, celebrar, criar intimidades. Teríamos que nos despedir em breve de alguns peregrinos que não fariam o Caminho todo. O desafio era uma espécie de comemoração.
Então fomos ao centro da cidade, comer e beber. E comemos e bebemos bastante, festejamos a amizade num lugar de quase mil anos de história. Eram muitas histórias juntas. Ficamos bêbados juntos.
À meia noite, entramos em uma boate. Saímos às duas da manhã. E mesmo sem condições de caminhar, Javi, Jinez e Moisés partiram para o Caminho. Eu, Liga e Maitê ficamos. Nos hospedamos em um hotel próximo. Mal lembro como cheguei e dormi. Mas no outro dia estávamos de pé bem cedo, já recordando a noite e ainda celebrando. Depois pegamos um ônibus e fomos atrás dos amigos. Havíamos despachado as mochilas no dia anterior para que a aventura fosse menos penosa. Reencontramos Jinez e Moizés no albergue combinado. Os dois descansavam, ambos com insolação nas costas. Javi estava no hospital, cuidando das pernas que haviam sofrido com o exagero da noitada. Chegamos e também fomos descansar o corpo.
A alma já estava lavada, pronta para o próximo dia no Caminho.
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