Como num telefone-sem-fio, eu dava uma bicada no copo de cerveja do meu amigo, meu irmão me flagrava e contava para a minha mãe que eu estava bebendo; minha mãe, filha de um alcoólatra e divorciada de outro que a deixava sozinha com os filhos para beber, recebia a notícia como se eu estivesse na sarjeta; nos dias seguintes, eu ouvia gritos, histórias de homens que haviam se afundado na bebida e sermões infindáveis sobre os males das drogas.
“Eu não podia perder vocês”, minha mãe diz hoje quando eu recordo daquele tempo.
Era mesmo só uma bicada no copo de algum amigo, ninguém fica bêbado assim, eu pensava. Mas como todo mundo lá em casa já era traumatizado com as histórias que minha mãe contava, a quantidade que eu bebia não importava. A notícia sempre chegava a ela assim: que eu estava na sarjeta.
Na faculdade, quando também comecei a trabalhar, passei a beber um pouco mais, e até dei algum trabalho ao irmão que morava comigo e que naquela época não bebia. Me lembro do dia em que convidei amigos da minha turma para beber no apê que eu dividia com ele. A turma toda foi, compramos garrafões de vinho “sangue de boi”, um amigo levou charutos, e passamos a noite bebendo e enchendo a sala de fumaça. Meu irmão não conseguia dormir. Aquela noite foi traumática para ele. Ligou para os nossos pais algumas vezes, ameaçou chamar a polícia e contou com a ajuda do porteiro para acabar com a festa. Naquela noite, para o irmão, a nossa casa era a sarjeta.
São poucas as histórias como essa que tenho para contar. A maioria aconteceu com a turma da faculdade, nas casas de colegas, sem risco e sem o irmão para testemunhar. Outras poucas, com os meus próprios irmãos quando eles, já adultos, começaram a beber. Me lembro que íamos a boates, a shows de rock, a bares com os amigos... Mas eram raras as vezes em que ficávamos bêbados, como minha mãe imaginava que estávamos.
Não me lembro exatamente quando as coisas começaram a ficar mais calmas para ela. Possivelmente, quando os irmãos mudaram de lado e começaram a beber comigo. Ou quando meus avós e meu pai, numa sequência de poucos anos, começaram a se despedir da vida. Suas ausências modificaram a relação da mãe com a bebida. Foi como se as mortes, ainda que tristes, tivessem dado espaço para uma mulher mais livre. Foi quando vi minha mãe beber pela primeira vez.
Então mandei mensagem para os meus irmãos: “A mãe está bebendo”. Eu queria que eles brigassem com ela como ela fazia comigo. Mas esse telefone-sem-fio já estava desligado há alguns anos. O que sentimos, na verdade, foi alívio. Agora podíamos beber sem a vigilância constante da mãe. E com a presença ilustre dela.
Dias depois, marcamos um encontro num bar. Pedimos uma rodada de chopp, com um copo a mais do que costumávamos pedir quando saíamos juntos. Fizemos um brinde, a mãe deu uma bicada no copo, fez uma careta de quem ainda não havia se acostumado com o gosto amargo da bebida, e a noite seguiu.
Não sem, entre uma rodada e outra, a mãe nos contar uma história traumática de um amigo que havia se afundado na bebida.
Comments