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Eu só queria não ir

  • Foto do escritor: Lucão
    Lucão
  • 18 de out. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 19 de out. de 2024



Não era função de criança, mas eu ia.

 

Com doze anos, eu e meus irmãos já acompanhávamos nossos avós nos hospitais quando eles se internavam. Minha vó foi pouco. Com oitenta anos, quando tomou um tombo e quebrou o quadril, foi quando a vi no hospital delirando, usando uma colher imaginária para comer num prato que não existia. Ela estava com fome, a cozinheira que beliscava comida enquanto cozinhava, a vó sempre estava com fome. Morreu faminta, querendo comer mais a vida.

 

O vô começou cedo, ao sessenta. Eu e meus irmãos passávamos as noites na enfermaria com ele. Meus tios não se entendiam e iam bem menos do que nós. Minha mãe, que ia, mas não podia ficar o dia todo, ficava um pouco, pagava as contas dos remédios, das consultas, das dívidas que o vô fazia. E mandava a gente ir. Os outros, os tios e primos, quando iam, uma ou duas vezes, sumiam depois, como se tivessem cumprido uma missão humanitária, como se tivessem gerado créditos para não voltarem mais. Meus avós se internavam oito, nove, dez vezes. Éramos nós, os netos, que nos revezávamos de dia, que virávamos as noites, que quando o vô quase morria, quase me matava de medo. Eu tinha medo de hospital. Saía um irmão da enfermaria, entrava outro, com um abraço dado na porta do quarto, na recepção do hospital, no café em frente ao prédio pintado de azul. Quando o vô dormia, eu saía do quarto, ia para a rua respirar, trocar o ar, sentir outros cheiros que não fossem de remédio, de gente doente. Ia ouvir outros barulhos que não os gemidos, as reclamações, as histórias tristes. Éramos nós, os netos, que dormíamos numa cadeira de plástico enquanto o vô apagava na maca. Às vezes sobrava outra cadeira de um paciente que foi embora, e improvisávamos uma espreguiçadeira com duas cadeiras de plástico grudadas. Ao lado de outros doentes, de outras famílias com seus doentes, nós tentávamos dormir. Eu era o mais novo dos acompanhantes do quarto, sempre. O futebol na rua, o pique-esconde no quintal do prédio, o joelho machucado, o videogame, os estudos, eu só queria não estar ali, ao lado de famílias que não eram a minha.

 

Quando pude, viajei, passei vinte dias, trinta dias, quarenta dias fora. As pessoas da minha família adoeciam e eu estava viajando. Quando o pai morreu, eu estava em Paraty. Os problemas com o corpo, o transporte, a limpeza, o velório e o enterro já estavam resolvidos quando voltei. Na morte da vó, eu morava em São Paulo. Não cuidei da papelada, não vi o choro mais triste da família, perdi o abraço mais apertado. Vi o corpo dentro do caixão, no enterro.

 

Sinto mais saudades, sofro sozinho. A conta para ver os mortos já é mais cara do que a dos vivos. As passagens em cima da hora, o táxi de Paraty ao Rio, a viagem para o velório da vó. Eu sou o que mais sente falta, o que mais sente culpa, o primeiro a sentir a ausência dos irmãos e da mãe, a saudade das tias, dos primos. Sou o que assiste à felicidade de longe. Nessa família que agora adoece menos, hoje as pessoas nascem, brincam e se amam mais.


Nessa família, eu sou o adulto que fugiu e se ferrou.

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