Quando entrei no avião para voltar para casa, depois de uma viagem de um mês por Portugal, cheia de histórias, escolhi um filme para assistir e, de repente, a história do filme me fez lembrar do pai.
Fazia algum tempo que não me lembrava dele, não com tantos detalhes e tristeza. Lembrei dos seus últimos dias de vida, antes de ir à UTI, de como foi dura nossa relação quando o pai começou a morrer. De como ele foi teimoso com a própria vida.
Eu sabia que o pai estava morrendo e não queria que ele morresse. E brigava com ele por isso. Melhor: eu não queria que ele morresse e brigávamos. Eu dizia: “Não morra!”. E ele me respondia: “Eu não vou morrer!”. Ele mentia, sabia que estava morrendo, mas tinha pavor de hospital. O pai não ia ao médico para não ser internado. E eu dizia: “Vá ao médico ver o que você tem”. E ele respondia que estava bem, que era só uma alergia, que tinha ido à feira e o pó da manga era a causa da irritação e blá blá blá...
O pai estava morrendo. Eu sabia disso, meus irmãos sabiam disso. Mas demorei a saber que o pai estava era vivendo a morte. Ele não dizia isso, mas esse era o jeito dele morrer, vivendo, comendo as comidas que lhe faziam mal, bebendo cerveja até tarde nos fins de semana. O pai estava morrendo para nós, morrendo para o mundo, mas, para si mesmo, de algum jeito estava vivendo. Discutíamos com ele todos os dias. E depois de discutirmos com ele, discutíamos entre nós, os irmãos. Sofremos muito nesses últimos dia de vida o pai.
Foi numa quarta à noite que minha mãe me ligou e disse: “Filho, vá ver seu pai”. Eu me lembro como fiquei. Sabia que minha mãe tinha razão outra vez e que eu devia ir à cidade dele para vê-lo. Fui. No dia seguinte eu estava lá, vendo meu pai pálido, com dificuldade para respirar, mas sentado na sala de TV, na poltrona do patriarca, assistindo ao futebol. Eu disse: “Pai, vamos ao hospital?”. E ele disse que não, que ia no dia seguinte, quando a médica, sua amiga, estaria de plantão. “Ela vai me dar um remédio e eu vou ficar bem, rápido”, depois tossiu e gemeu de dor. Eu insisti, mas ele já estava decidido. O pai viu quase todas as suas irmãs morrerem nas UTIs dos hospitais. Era isso que ele achava sobre hospitais, um lugar que as pessoas iam para morrer.
Então eu voltei para casa, a sessenta quilômetros de distância, com raiva, querendo brigar com o pai outra vez. Mas me lembrei do que minha mãe havia me dito, para não carregar as correntes dos outros, só as minhas.
No dia seguinte, meu irmão gêmeo, que morava mais perto do velho, me ligou e disse que algo havia acontecido com o pai. Chamaram a ambulância, enquanto eu e meu outro irmão pegávamos a estrada outra vez. O pai tinha tido um AVC. Quando cheguei, ele já estava entrando na UTI. Depois mal vi meu pai durante os mais de vinte dias internado. Ele morreu na UTI.
Bem... De volta ao avião, eu estava assistindo a um filme em que um filho lida com a morte do pai. E a história acaba com o filho já adulto, batendo uma foto da família, sem o patriarca.
O filme acabou, desliguei o monitor da poltrona e fui ver no celular as fotos que eu tinha da família. A maioria sem ele também.
Ou melhor: a maioria com o pai teimando em não estar.
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