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Lucão

Lembra que a gente se estrilicava?

Conversas de whatsapp com minha mãe



“Lembra que a gente se estrilicava?”, minha mãe me mandou essa mensagem outro dia, e fui me lembrar.


É verdade, eu e minha mãe nos estrilicávamos. Não adianta pesquisar no dicionário, essa palavra não existe. A gente discutia falando alto. Estrilicar é isso: discutir com a mãe num tom acima do permitido.


Tínhamos os temperamentos parecidos, nos alterávamos rápido e falávamos alto um com o outro. Só que ela era a mãe, tinha mais razão do que eu para se estrilicar comigo. Eu só tinha dez anos e possivelmente brigávamos pois eu queria ter razão com dez anos. E ela só queria ter paz depois de chegar do trabalho cansada, mas ainda tinha que lidar com as bagunças dos três filhos.


Depois eu cresci e, com o tempo, já morando sozinho, melhoramos. Deixamos de nos estrilicar, principalmente quando passei a acreditar mais nas coisas que minha mãe dizia. Minha mãe tinha muita razão quando dizia. Eu me estrilicava à toa, era um adolescente cheio de certezas, mas com pouca vivência, como todos os adolescentes são.


Nunca passávamos dos limites quando nos estrilicávamos. Sim, estrilicamento tem limite. Já menti, já fiz muita arte, como os filhos novos fazem, já passei dos limites com essas coisinhas de adolescentes, já dei motivo para passarmos dos estrilicamentos. Mas ficávamos aí, nas vozes altas, às vezes por horas, mas nesse limite.


Adorei a palavra “estrilicar” quando minha mãe a escreveu na mensagem. Virou uma coisinha só nossa, de mãe e filho, que a gente vai poder exibir pela vida: “Lembra quando a gente se estrilicava?”. Somos cúmplices e personagens desse acontecimento na nossa história.


Também adorei quando ela me fez lembrar daquela época, me forçando a um passeio por uma memória antiga. Fui à nossa casa verde, o sobrado anoitecendo, a mãe chegando do trabalho, guardando o carro na garagem, enquanto nós, os filhos, saíamos correndo para organizar a casa.


Mas a verdade é que eu não me lembro tanto das brigas. Lembro que eu me irritava fácil e falava alto, a ponto de minha família sempre dizer: “Lucas, menos...”. Mas não me lembro dos detalhes das brigas. Eram banais, como as de mães preocupadas com os filhos. Digo isso não para acobertar minha mãe, mas para ser justo.


Nós nos estrilicávamos mesmo, como ela disse, e era só quando eu não queria estudar e tirava notas baixas, quando não organizava a bagunça da casa ou não lavava as vasilhas ou não tirava o lixo. Minha mãe estrilicava com razão, e eu estrilicava sem razão alguma.


Não é conversa de filho agradecido, minha mãe sempre teve razão. Ela dizia que tinha um sexto sentido apurado. Acho que ela tinha isso mesmo. Eu, já todo ateuzinho, não querendo acreditar na sensibilidade que ela tinha para prever desastres, me estrilicava com ela. E depois sofria com os desastres.


Talvez, me estrilicar fosse minha forma de mostrar, meio estabanado, que eu queria ser igual a ela. É provável que sim.


Mas, enfim, sobre a pergunta que ela me fez na mensagem, se eu me lembrava que a gente se estrilicava: lembro sim, mãe.

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