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Lucão

Mãe de muitos

Às vezes é preciso confiar mais na memória do que no que os outros nos contam para lembrar de quem somos e de onde viemos.


É um fato: quanto mais me debruço sobre a minha memória, mais tenho convicção de que as escolhas que faço hoje têm origem em outras épocas: na infância e na família daquele tempo.


O que aprendi veio de uma casa simples, mas muito sólida, quase rochosa. No caso, rochosas: meus pais. Mas aqui quero me restringir a falar da minha mãe. Nossa mãe. Mãe de muitos.


Minha mãe não foi só mãe de nós, os 4 irmãos, os 4 filhos dela. Minha mãe foi mãe de todos que buscaram nela uma casa, mesmo que temporária, para abrigar suas angústias. Minha mãe foi — e ainda é — um abrigo, uma lição, uma palavra de conforto. Foi também os ouvidos para escutar os lamentos, as tragédias — mesmo que soubessem que com a mãe não tinha muito de “só ouvir”.Ela ouvia, mas depois falava, dava as broncas, junto com as soluções, as esperanças, os novos caminhos.


A mãe fez isso durante a minha infância toda. Fez com os filhos, com os primos, com os irmãos e irmãs, com os tios, os amigos... Fez com meu pai, seu ex-marido. Fez com todos que sabiam que ela era a pessoa mais capaz da família e do grupo de restituir o equilíbrio, de ser o centro.


Fez e continua fazendo, do mesmo jeito, com o mesmo coração. Mas confesso — ao menos a mim é o que parece — que o coração da minha mãe já não merece ser usado para isso. Merece ser usado para si. Merece ser exclusivo para cuidar da vida que sempre cuidou dos outros. Mas continua fazendo, pois é seu modusoperandi, é como ela habita essa terra, acolhendo, cuidando e devolvendo-nos mais firmes ao chão.


Lembro de muitas histórias assim.


Teve uma noite — eu devia ter entre 10 e 11 anos — em que, quando todos em casa já dormiam, alguém bateu na janela da sala. Era madrugada. Morávamos no térreo de um prédio pequeno. As batidas repetidas me acordaram junto com minha mãe, que me mandou voltar para cama quando viu que era um conhecido. Fiquei escutando do quarto a conversa que tiveram na porta de casa. Tinha a ver com jogos, dívidas, um dinheiro emprestado que precisava ser saldado. A pessoa pedia dinheiro emprestado a minha mãe para pagar a dívida. Não era a primeira vez e nem seria a última que a pessoa apareceria assim, pedindo esse tipo de ajuda a minha mãe.


No outro dia, acordei e a pessoa estava lá, dormindo na sala. Minha mãe fazia isso, como continua fazendo, colocando para dentro de casa as pessoas que lhe pedem ajuda ou mesmo as que precisam de ajuda mas não conseguem pedir. Minha mãe acolhe, ajuda a pessoa a se centrar, a seguir um rumo melhor. Depois a pessoa vai embora agradecida. Até surgir outra vez, pedindo nova ajuda. Muitas vezes volta com ingratidão. E a mãe sofre um pouco. Mas nunca deixou de ajudar. Nunca deixou de ser mãe.


Conheço algumas mães assim, como a minha. Mãe de 4 filhos, que nunca foi só de nós 4.


Sempre foi a mãe de muitos.


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