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Lucão

Relato de um sobrevivente


“Como me salvei disso tudo?”, me peguei pensando nisso.


Da pandemia, das negações à ciência, da política rebaixada a ódio e mentiras, das perdas de pessoas queridas, da saudade da família e amigos, da redução da vida a alguns cômodos... Me peguei pensando nisso, em como me salvei, física e emocionalmente, desse tempo ruim. E a resposta me veio rápido: com livros.


Não sou alheio à política. Não consigo. Vim de família que participa, vai às ruas, manifesta publicamente o voto, vibra com a vitória. Por herança, eu e meus irmãos continuamos a briga pelo que achamos justo. E isso tem um preço emocional, principalmente hoje, com o país “polarizado” entre a democracia e o autoritarismo. É duro manter-se são enquanto a política caminha insana, com mentiras e “arminha”.


Foi duro manter-me são enquanto minha família corria risco. Durante esse ano e meio de reclusão, não nos vimos. Voltamos a nos ver, de máscara e distanciamento, depois que os mais velhos se vacinaram: mãe, avó e tias. Mas ainda com receio do vírus, de nos infectarmos e espalharmos mais dor. Doeu demais viver longe deles.


No meio do caminho ainda tinha uma pedra e minha avó se desequilibrou nessa pedra, quebrou o quadril, fez cirurgia, ficou na UTI, depois no hospital por 3 dias e mais 1 mês em recuperação, caminhando com andador. Dureza atrás de dureza.


É difícil ficar completamente bem nesse momento do mundo. E se alguém consegue ficar bem assim, possivelmente não está sabendo de tudo. Eu não estou completamente bem, mas estou melhor do que eu imaginava. Estou bem. E foram os livros que me salvaram.


Foi com a leitura que saí de casa e fui a Nápoles, de Elena Ferrante, passar raiva com a amizade torta de Lenu e Lila. Conheci suas famílias, beijei as bocas que elas beijaram, comprei suas brigas e me apaixonei ainda mais pela escritora.


Também passeei pelos campos de Alberto Caeiro. Me reflorestei nos bosques pintados pelas palavras do poeta, respirei um ar mais puro enquanto ele falava das plantas e das divindades, vivi uma vida realmente natural com a poesia do Pessoa.


Drummond me fez very well com o livro “farewell”.


Agora estou em Paris com Simone de Beauvoir, conhecendo a vida parisiense de um século atrás. Já me comovi com a coragem de Silvye, de se apaixonar por sua amiga em um tempo em que nem as paixões entre sexos opostos eram permitidas. Que coragem!


Também publiquei um livro, contei minhas histórias, viajei pelas memórias de 20 a 30 anos atrás. Lembrei dos meus pais se separando, da minha mãe fazendo bolo de cenoura na cozinha que, aos sábados, ficava pura farinha, da perda dos meus avós e de quando eu ainda não sabia nada sobre dores. Lembrei das férias em Caldas Novas, das bocas vermelhas de tanto chupar picolé e do primeiro beijo, que foi na verdade um selinho.


Fui salvo pelos livros. Ou melhor, fui resgatado por eles. Amei, fui traído, viajei de avião e de trem, fiquei preso num quarto de papel de parede amarelo. Com a literatura, me salvei do fogo e do gelo.

E se para você parece boba uma crônica que, no fim, fale simplesmente de livros e leituras, essa crônica não é sobre livros e leituras.


Essa crônica é um relato de um sobrevivente.

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