Foi no meio do Caminho, em Logroño, que me lasquei.
Por uma decisão errada, decidi peregrinar a Compostela sem deixar prontas as crônicas do jornal. Minha ideia era escrever de lá, para compartilhar as histórias ainda frescas.
Era manhã de sexta, dia de enviar o texto ao jornal, quando meu celular escorregou da minha mão e caiu no chão, com a tela virada para baixo sobre as pedras do cascalho. Antes de ver, eu já sabia que ele havia se quebrado inteiro. Da outra vez aconteceu a mesma coisa, no mesmo trecho. As pedrinhas cumpriram novamente a missão de destruir os celulares dos peregrinos que caminhavam olhando para as telas dos smartphones.
Depois que ele se quebrou, começou minha angústia de arrumar um jeito de escrever a crônica, que deveria ser enviada até o meio-dia. Dois amigos do interior da Espanha me disseram que me ajudariam quando chegássemos a Logroño. Um computador velho bastaria, um comentou. Mas quando chegamos, eles se atarefaram organizando uma expedição noturna pelas trilhas espanholas, que, aliás, animou toda a turma. E eu fiquei entre a cruz e a crônica.
Então, minha outra amiga espanhola, da região de Barcelona, pegou na minha mão e me levou ao centro de Logroño. Encontramos uma tenda de smartphones, comprei outro aparelho e voltamos rápido ao albergue, onde os amigos já se organizavam para sair.
Chegamos e minha amiga se foi para o quarto preparar a mochila que seria despachada junto com as dos demais. Caminharíamos sem as mochilas. Passaríamos a tarde e a noite na cidade, comendo, bebendo e desfrutando. À meia noite, partiríamos sem peso rumo à mata, com destino ao próximo trecho de Compostela. Mas no meio do Caminho ainda tinha uma crônica.
Não subi aos quartos, me sentei sobre as escadas e fiquei instalando aplicativos, fazendo backup do aparelho, gastando o tempo imenso com um eletrônico que mal cabia na mão. Por fim, consegui e comecei a escrever. Falei das durezas dos últimos dias, da saudade de casa, da vontade de conseguir chegar à Compostela caminhando... Fiquei meia hora escrevendo, enquanto os peregrinos subiam e desciam. Outro amigo, de Madrid, desceu de banho tomado e mochila pronta, disse para eu me apressar ou perderia a aventura. Terminei o texto de qualquer jeito.
Subi as escadas, peguei minhas roupas no quarto, fui para o banho e me aprontei. Depois peguei a mochila e desci para encontrar a turma, que me esperava no portão do albergue. Deu tempo.
Éramos quase dez amigos. Caminhamos ao centro, despachamos as bagagens para o destino seguinte e partimos para o dia livre. Comemos, bebemos e terminamos numa boate rodopiando nossas lanternas acesas, com a amiga da Letônia fazendo strip-tease sobre a mesa, eu dançando reggae como se fosse forró e falando línguas como se fosse poliglota...
No fim, quase todo o grupo desistiu de caminhar à noite depois de tanta dança e bebida. Os que foram para a trilha, não se deram bem. Pararam no hospital desidratados e com pernas inchadas. Com o meu novo celular, fiquei com a função de encontrar hotel às duas da manhã nós, os remanescentes. Encontrei. Mal chegamos e nos jogamos nas camas. Estávamos exaustos. No outro dia, bem cedo, pegamos um ônibus para a cidade onde as mochilas haviam sido enviadas.
Foi no trajeto, dentro do transporte, com uma amiga dormindo no meu ombro e os outros cochilando nas poltronas de trás, que percebi que não havia enviado a crônica do dia anterior. Faltou apertar o botão “enviar”. Todo o meu estresse e correria tinham sido em vão.
Então peguei a crônica, que não estava boa, e decidi reescrevê-la, narrando as histórias desse dia. Depois redigi um e-mail ao jornal pedindo desculpas, anexei a nova crônica solicitando que fosse publicasse na próxima semana. Procurei o botão “enviar”. Apertei. Esperei a confirmação. “E-mail enviado”.
Nunca me esquecei desse acontecimento...