Não recebi o alerta quando subi, de tomar cuidado com o velho do bonde. Na Praça Martim Moniz, embarquei no bonde 28E, o que dá mais passeios por Lisboa, me sentei na poltrona da janela e parti.
Ele, o velho, anda solto. Tem um jeito comum e até causa pena quando é visto, com o rosto cansado e a curva da coluna exposta. Faz tipo de simpático, cumprimenta o maquinista, sorri para alguns, mas quando o bonde começa a deslizar pelas ruas da parte antiga, lá está ele, a falar alto para todos. Começa com aquela conversa sobre o clima. O clima está quente. O clima está frio. Independente se está quente ou frio, reclama. E resmunga, conversa com o maquinista sobre quase todas as questões da cidade, como a da rua cheia de turistas que atrapalham o trânsito, a da rua vazia, da sujeira… Então passa a conversar sobre a política portuguesa, como se ele e o maquinista fossem amigos - e talvez até sejam -, fala sobre a inflação, sobre a pobreza, sobre os impostos… E sobre a mulher que acaba de atravessar a rua sem olhar para o lado. Depois o velho grita com os carros que param na frente do bonde. Xinga muito. Um carro está estacionado sobre a linha, empacando o trânsito. E o velho do bonde, quando avista o motorista do carro a correr para tirar a máquina da pista, berra para que o gajo vá à rapariga que lhe pariu.
A três paradas da minha, no Chiado, o velho desce, não sem antes gritar, da parte de trás do bonde, um “até amanhã!” para o motorista que está na parte da frente. Um jovem turista italiano sentado no meio da cabine responde “ciao!”, e alguns de nós rimos.
Desço no cemitério, no fim da linha 28E, onde todos precisam descer. Dou uma volta pelas lápides, tiro fotos e volto para pegar outro bonde da mesma linha. Na terceira ou quarta parada, entra ele outra vez, outro velho, mas o mesmo.
O velho do bonde são muitos, que entram e saem da cabine sem parar. Usam o mesmo uniforme composto por uma calça velha escura, um cinto apertadosegurando a calça sobre o umbigo e uma camisa clara. Entra e fica por um tempo na parte da frente da locomotiva, depois, como se fosse descer pela porta dos fundos, caminha apressado até o fim e volta para a dianteira sem deixar de falar. Faz essa ameaça duas ou três vezes, até que desce resmungando e some na multidão.
Não há intervalo, o velho desce do bonde, o velho sobe no bonde, e começa a falar com o maquinista sobre os mesmos assuntos.
O velho é uma atração, que deixa todos atentos. Talvez uma tática para nos tirar a atenção das mazelas que há em Lisboa. Mas não há tantas mazelas. Seria um funcionário do bondinho, pago para nos entreter? Um comediante de stand-up? O fato é que os turistas começam a assistir assustados e terminam rindo e fuxicando. Quando o velho vai embora, não há mais graça no bonde e quase todos descem. O bonde se aquieta por alguns minutos, é o tempo de olhar as ruas, ver a arquitetura de Lisboa. Daí o velho volta e recomeça o show.
Estive no bonde 28E por duas vezes. O velho esteve por quatro ou cinco. Só me lembro que o bonde atravessa a parte histórica da cidade, que mal sei descrevê-la. Terei que voltar a Lisboa e fazer esse trecho a pé se quiser conhecer a cidade.
De bonde, a cidade é o velho.
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