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Lucão

Roupas no varal



Não queria parecer uma pessoa démodé, vintage ou saudosa demais, mas tenho saudade de como valorizávamos mais o tempo, lá no tempo em que eu era criança.


Nesse tempo, fazíamos coisas sem muita pressa, até porque as coisas de antigamente não podiam ser feitas com pressa, eram analógicas, exigiam de nós o esforço, as mãos e o tempo. Não tinha atalho.


Nos disseram que o mundo digital nos daria tempo para as outras coisas, como o sossego, e que sobraria tempo para levar a vida num ritmo mais lento. Mas até agora, que eu tenha percebido e vivido, as outras coisas que a vida digital nos deu são mais trabalho e cansaço. A verdade é que o mundo atual tem nos roubado tempo demais.


O que digo é tão verdade, que nem conseguimos mais ver o tempo passar como antigamente. É difícil, por exemplo, ver as coisas simples, como o pôr do sol. A cortina do trabalho tampa tudo. Antes, por aqui, existia mais verde do que concreto, mais pássaros do que sons automotivos, a gente conseguia ver o dia indo e a noite chegando. Era fácil de saber do fim do dia pelos cantos dos pássaros e pela luz minguando no céu devagar.


Agora a luz dos aparelhos celulares, computadores e televisores ofuscam tudo, inclusive o pôr do sol.


Com a digitalização das coisas, até a máquina de lavar, que há algum tempo era a grande invenção do homem, ficou démodé. O que é atual é a máquina de secar, a que lava e seca, e que funciona muito bem para a vida nos apartamentos, que ocuparam os lugares das casas, das chácaras com quintais e jardins.


Digo isso tudo para concluir o pior: com a digitalização das coisas, é o fim das roupas no varal.


É o fim do tempo em que a gente colocava a roupa para secar e tinha que esperar para que enxugasse. Gotejava água da roupa, levava tempo, e se fizesse muito sol, tinha que tirar a roupa logo que secasse, para não estragar. Mas tinha o tempo de tirar as roupas do varal.


Se ameaçasse chuva, alguém gritava "as roupas no varal!" e a gente corria para tirá-las antes que molhassem de novo.


Entre lavar e secar tinha um tempo que era de tantas coisas: de brincar na rua; de fofocar na porta com os vizinhos; de ficar na mesa depois do almoço conversando com a família, enquanto os netos, na sala, assistem à TV.


Quando as roupas iam para o varal, a gente ia viver. O tempo não podia ser acelerado nem retardado. As roupas no varal tinham o tempo delas, um tempo que a gente conseguia ver passar e quase dava para tocar com as mãos. Aliás, era preciso tocar nas roupas com as pontas dos dedos para saber se já estavam secas. E se não estivessem, a gente ia aproveitar o tempo que ainda tinha.


Também dava para ver o tempo passar. Tempo vivido com os olhos, com as mãos, com as conversas nos portões. Era um tempo em que a gente se via. Era um tempo recheado de vida.


É uma pena que esse tempo não volte. Tenho saudade do tempo em que o tempo existia. Hoje é cada dia mais difícil de tocar o tempo.

Ele escorre pelas mãos.




1 Comment


ANY SANGUINETE
ANY SANGUINETE
Jun 17, 2021

Que texto! Me pego refletindo sempre sobre o que estamos fazendo com o tempo. Um conflito viciante de estar com uma mini tela na mão e não contemplar o que acontece em volta. Fato é, que me deparei com este texto no dia que decidi de fato me ausentar das famosas redes sociais (e ja fiz isso outras vezes), e retomar aos velhos hábitos, onde nada era instantâneo... Eu era apaixonada por ler os blogs, resolvi então fazer uma lista deles para apreciar nos próximos meses. Me encontro com uma alma doente, carente de tempo e simplicidades. Contraditório para uma publicitária, querer voltar no tempo de e-mails, ligações telefônicas, cartas escritas a mão cheias de afeto. É amargo analisar comportamento…

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