A música está alta. Estamos na varanda da casa, entre irmãos, pai, madrasta, alguns amigos da família, cerveja, carne e conversas casuais. De repente, uma discussão começa, é sobre música (não há encontro nessa casa sem música). Não é sobre a música como arte, mas sobre a qualidade das músicas que tocam. Elas não têm agradado a maioria.
O dono da casa é quem escolhe a trilha sonora. Seu gosto é muito diverso, vai de Di Paullo e Paulino a Pavarotti. Alguns gostam, outros nem tanto e, em meio a gostos e desgostos, um amigo sugere uma solução: cada um tem direito a escolher uma sequência de duas músicas. Assim, quando a segunda música termina, outro escolhe uma nova sequência, até que todos tenham sido agradados pelos seus próprios gostos musicais.
A princípio, o método é bem democrático, até que uma música desagrada a maioria. Começa uma nova discussão, agora sobre gosto musical. Em meio a piadas e alfinetadas, o amigo volta a ter outra ideia para apaziguar os ânimos do local: cada um escolhe duas músicas, como antes, mas agora ninguém pode falar mal da sequência do outro. Caso a regra seja descumprida, o crítico perde a vez na rodada.
Assim, o ambiente volta a ficar tranquilo e a tarde flui com música, cerveja e conversas casuais. Não há chance de desligar o aparelho de som. Nesses encontros, a música é tão importante quanto as pessoas. É ela que garante a alegria desses momentos.
Certa hora, o pai apresenta seus filhos a um amigo: “Esse, o mais velho, trabalha no agronegócio. O gêmeo é professor, a mocinha entrou na faculdade agora e o da ponta — ele aponta para mim — é o vagabundo da família. É poeta”.
Por mais que o pai esteja brincando, que essa fala seja mais em tom de piada que de verdade, existe uma verdade nessa fala, perpetuada há anos. É muito difícil entender o trabalho do artista como sendo trabalho. Aos olhos de quem só a consome, arte não é trabalho, é talento.
Tenho a sorte de ter nascido nessa mesma família, que me fez ver a arte como uma forma poderosa de resistência. O mundo é muito duro para ser vivido sem arte. Sem ela, não existiriam o choro, o riso, o grito, a dança, o corpo… Atrofiariam os olhos, os ouvidos, a boca, os braços, as pernas. A arte é o intervalo entre uma dureza e outra.
É romântico dizer que o artista é um vagabundo. A imagem está pronta, construída por quem não consegue perceber o papel do artista no mundo. É vendável colocar o poeta como louco, alcoólatra, mulherengo (ou puta). O artista debruçado em livros, letras, textos, pesquisas, dedilhados e pincéis, isso não existe, por isso também não vende.
Ser artista é duro, dá trabalho. E apesar de dar dinheiro para um monte de gente que não é artista, para si sobra muito pouco. O suficiente para comer, beber e dar mais caldo à história de que o artista é vagabundo.
Em meio a brincadeiras, outra música começa a tocar: “É pau, é pedra, é o fim do caminho, é um resto de toco, é um pouco sozinho…”. Antes que a música termine, levanto-me devagar e saio. Triste por ser um vagabundo, mas feliz por fazer parte do universo da arte, que embala uma tarde tão gostosa de música e bebida na casa do pai.
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