Tomei um tapa na cara.
Foi um susto. Não estava esperando pelo tapa. Ninguém espera tomar um tapa na cara, muito menos dormindo, muito menos da pessoa que se ama.
A mãozada no rosto não mexeu só comigo, mas com a cama, com o computador que estava sobre a cama e com o amor que tenho pela pessoa que me bateu...
A beleza ― se há beleza num tapa― é a do barulho que um tapa perfeito no rosto provoca, maior do que o susto do próprio tapa no meu rosto. Um som curto, mas redondo, sem eco, que reverbera por dias na cabeça da pessoa amada que apanhou.
Posso dizer, tirando esse tapa, que somos um casal tranquilo. Não moramos juntos, mas aos finais de semana sempre nos encontramos e ficamos de sexta a domingo trocando chamegos.
Na pandemia, trabalhamos bem mais do que de costume. Mergulhamos em projetos, cada um na sua profissão e no seu canto, até nos esgotarmos. Depois de um ano nessa maluquice, resolvemos quebrar um pouco a rotina e fugir para o meio do mato, passar uma semana trabalhando rodeados pela natureza, sentindo cheiro de terra molhada, ouvindo o passarinho cantar e o barulho da queda da cachoeira bem perto de nós. Foram quatro dias assim, num ritmo mais lento, tomando mais vinhos e fazendo mais amor.
Passamos o primeiro dia na casa, ajustando a rotina do trabalho ao novo cenário. No outro, fomos à cachoeira, um lugar ainda selvagem, pouco explorado pelo homem. A prova disso era que estávamos sós e tinha bicho de todo tipo: cobra, peixe e paredões imensos de aranhas. Para todo lado que a gente olhava via centenas de aranhas, de todos os tamanhos, penduradas em teias que se emaranhavam e cobriam todo o lugar. Por isso, resolvemos não ficar. A Carolina tem pavor de aranha.
Voltamos à casa que alugamos e percebemos que algumas aranhas também estavam por ali. Em menor quantidade e tamanho, mas estavam. Passei a tarde limpando os cantos, varrendo os insetos para fora.
No outro dia, voltamos à rotina de pouca peleja. Estávamos numa casa bonita, sem ninguém além de nós. Aproveitamos os dias sem pressa, com bastante comida, alguns livros e filmes, e brindando a esse curto momento no campo.
O tapa foi na última noite. Passamos o dia no deck, pegando um sol, curtindo o ofurô ― a casa ainda tinha esse charme, um deck com ofurô ―, bebemos, conversamos... À noite fizemos o jantar, tomamos mais vinho e fomos para a cama nesse clima, cansados, mas satisfeitos. Ligamos um filme, nos abraçamos... Depois eu dormi no ombro da Carolina.
E fui acordado com o tapa.
Sem me dar mais explicação do que isso, me disse: “Era uma aranha!”. Não teve pedido de desculpas, nem riso. Continuou séria à procura do inseto, até encontrar um bichinho menor que uma formiga andando pelo lençol. “Era um bichinho”, disse num tom de voz mais tranquilo, que mal ouvi por conta do zunido do tapa.
Foi um tapa bem dado, com a palma da mão e todo o medo da aranha, um medo seguramente maior do que o de me perder. Fui dormir triste, tentando me conformar com a minha insignificância: menor que um inseto.
Eu não diria que, nesse dia, o nosso amor tenha ficado por um triz. Mas que ficou por um estalo, isso eu ainda sinto e escuto.
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