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Lucão

Tarracha do brinco


“O que vim fazer aqui?”


Não foi uma pergunta de desespero. Quando cheguei caminhando a Santiago pela terceira vez, me fiz essa pergunta de forma curiosa. “O que vim fazer aqui?”, como quem procura uma tarracha de brinco que caiu no chão. “Alguém viu o que eu vim fazer aqui?”, pergunto ao povo que mora dentro de mim, avisando para tomar cuidado para não pisar na tarracha.


Sei que vou encontrar o motivo, enquanto penso nas histórias que vivi caminhando. É por isso que eu também fotografo muito enquanto ando, para depois olhar e lembrar das microhistórias, das paisagens, das pessoas, dos cafés, dos cemitérios. E me lembrar também que os motivos podem ser vários, e que eu posso eleger, para cada vez que me perguntarem, uma história.


“O que vim fazer aqui?”, me pergunto enquanto escolho as tapas que vou comer no meu bar preferido de Santiago. Todo ano celebro minha chegada à Compostela comendo tapas e bebendo vinho na Taberna do Bispo. O bar está sempre movimentado. O tempo todo os peregrinos chegam e vão embora. Alguns eu reconheço da estrada, rostos familiares e amigos. Outros, reconheço do espírito de peregrino. Quem peregrina sabe quem é peregrino também.


Neste ano, reencontrei com Laura neste bar, a alemã que conheci no dia em que caminhei no escuro e debaixo de chuva. Depois que terminamos de caminhar, celebramos neste bar por uma tarde inteira. Bebemos uma garraga de vinho, comemos um rodízio de tapas. Depois, Laura foi embora de Santiago e eu fiquei na cidade por mais alguns dias. Voltei à Taberna do Bispo por mais duas vezes, bebi vinhos, experimentei outras tapas, me lembrei dos outros anos, da vez em que conheci um casal de velhos portugueses na bancada do bar. Conversamos por horas. Ao final, nos despedimos e o casal me convidou a, quando visitar Portugal, me hospedar em sua casa. Me escreveram seu endereço num pedaço de papel e me deram. Guardei com carinho o endereço na minha carteira e, depois de anos, me toquei que havia perdido o endereço. Mas a história, não.


“O que vim fazer aqui?”, me pergunto outra vez e me lembro dos dias solitárias caminhando pelas matas. Eu caminho muito só, porque gosto. Adoro acordar bem cedo e começar a caminhada sozinho. Ando no meu ritmo, que acompanha o ritmo dos acontecimentos ao redor. Se os primeiros passos são pela natureza, acompanho o som da mata, margeio o rio que me faz companhia por mais de um quilômetro, ouço o vento na copa das árvores, começa a chover e eu escuto a água bater nas folhas. É começo de outono e as árvores altas começam a secar. As cores vão do verde ao marrom. Se num dia o caminho começa pela natureza, no outro pela estrada. Os carros, ainda de faróis ligados, contam outras histórias, fazem outros barulhos, têm outros ritmos. “Para onde essa pessoa vai?” ou “Se eu fizesse o Caminho nesse carro, chegaria a Santiago em duas horas”, fico pensando...


“O que vim fazer aqui”, me pergunto e ainda não contei muitas histórias... Das vezes que caminhei por mais de dez quilômetros sem encontrar uma cafeteria aberta. Das vezes que decidi contar por quantos cemitérios eu passava. Do dia em que encontrei uma peregrina chateada com a caminhada e que me deu uma resposta ríspida num café. E que de noite, num bar, tomamos cerveja até tarde e rimos dessa história com outros amigos peregrinos.


Procuro a resposta certa em cada história, e cada história tem respostas demais, nenhuma errada.


“O que vim fazer aqui?”, me pergunto enquanto me ajoelho para pegar a tarracha do brinco. Mas quando vejo, são tantas as tarrachas, que não sei qual pegar.

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