top of page
Buscar
Lucão

Vitrola estragada




“Você precisa alinhar seus chakras”, minha amiga me enviou a mensagem, como a concessionária costuma fazer todo mês, mesmo eu não tendo mais carro há anos.

 

Não respondi à amiga. Era tarde, tinha acabado uma aula extensa sobre escrita de si. Falei bastante do meu pai como exemplo da minha escrita, mas ela entendeu errado. Contei dos dois livros que escrevi recentemente: um romance ficcional sobre um rapaz que enfrenta seu passado familiar, enquanto lida com histórias do presente; e um livro de ensaios sobre o meu pai. Falei sobre a dificuldade em escrever dois opostos quase perfeitos, um sobre um pai ruim, o da ficção, e outro sobre o meu pai de verdade. Também falei do susto que tomei quando terminei o romance e minha mãe me enviou uma carta que meu pai havia escrito há décadas, cheia de carinho.

 

Mas quando a aula acabou, ela me enviou essa mensagem dizendo que eu precisava alinhar os chakras, que as histórias claramente não resolvidas com o pai estavam me fazendo mal. E terminou o laudo dizendo que era por isso que minha lombar doía.

 

Não respondi. Mesmo com a lombar se contorcendo com a mensagem, era tarde, e eu estava cansado demais para contrariá-la.

 

Na semana seguinte, recebi os resultados do exame de ressonância e descobri que não tinha só uma, mas três hérnias de disco. Fiquei emocionado. Quem tem três hérnias de disco? Na hora, lembrei da minha amiga. Depois, do meu pai. Em seguida fiquei confuso. Quem seriam os pais das outras duas hérnias?

 

Nasci num berço simples, mas bonito, com pais presentes. Minha mãe, psicóloga, desde pequeno me incentivou a lidar com minhas questões e, principalmente, a fazer terapia. Ela dizia: “Carrega as suas correntes. Deixa que eu e o seu pai carregamos as nossas”, querendo me dizer para tocar minha vida adiante, encontrar minha autenticidade, minha originalidade. Ela dizia para eu viver sem tentar agradar nem salvar pai e mãe.

 

Então eu fiz isso. Passei não só a honrá-los como a questioná-los também. Quis saber mais sobre minhas histórias ancestrais, meus avós, bisavós, tios... E minha mãe me contava as histórias que eu ainda não sabia.

 

Hoje ela sabe que eu gosto de escrever a partir desse lugar, de mim. Outro dia, quando eu mesmo tive dúvidas se escrevia ou não sobre um passado um pouco mais duro, ele me disse com graça: “Filho, escreva logo, que eu ainda quero ler em vida”. Se o pai estivesse vivo, ele faria o mesmo.

 

Então eu escrevo com paixão as histórias originais que só eu posso contar. E quando começo a escrever, passo dias sentado e me esqueço de me levantar, alongar o corpo, dar uma volta. No fim, as costas sofrem demais com a pressão da posição que eu trabalho. No romance que terminei há pouco, foram sete meses escrevendo na mesma posição, sem parar.

 

Agora, preciso ir à concessionária alinhar a máquina. Sei que a conta vai ficar cara, afinal, esse corpinho aqui só aceita peça original.

 

Mas se ficar muito cara, talvez eu aceite um orçamento do alinhamento de chakras. Desde que também emitam nota e o serviço tenha garantia.

Comments


bottom of page